ARTIGO

TRAUMAS DA INFÂNCIA COM REFLEXOS NA VIDA ADULTA

TRAUMAS DA INFÂNCIA COM REFLEXOS NA VIDA ADULTA

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Publicada há 2 anos

A infância é uma fase da vida cujas experiências vividas vão reverberar-se na vida adulta. Quando traumáticas ou violentas, essas experiências deixam, nas pessoas, profundas marcas e transtornos que persistem por toda a vida: sofrimentos por abuso sexual, psicológico ou físico, rejeição, abandono, humilhação e situações de vulnerabilidade, incertezas, medos, insegurança, baixa autoestima, agressividade, intolerância à frustração. Trauma e violência infantil incluem “maus-tratos físicos e/ou emocionais, abuso sexual, negligência, exploração comercial e qualquer tipo de negligência/abuso que acarrete prejuízos reais ou potenciais para a saúde, sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade da criança” (WAIKAMP; SERRALTA, p. 138). São eventos estressores traumáticos que representam situações ameaçadoras à vida, consideradas catastróficas e sentidas como intensamente perturbadoras. Associam-se ao surgimento e evolução de transtornos mentais, como de humor, depressão e transtorno de estresse pós-traumático (FIGUEIREDO et al., 2013).

Do ponto de vista psicodinâmico, o trauma implica excitações que superam a habilidade de tolerar e elaborar psiquicamente, sendo as crianças, como seres em desenvolvimento, as mais afetadas e suscetíveis a este tipo de evento. Cuidados primários são essenciais para a “estruturação psíquica e aquisição de habilidades de regulação afetiva, capacidade reflexiva e autonomia" (WAIKAMP; SERRALTA, p. 138). Assim, vivências traumáticas e falhas graves nas relações precoces podem interromper ou alterar o desenvolvimento saudável, reduzir os recursos psicológicos, diminuir a capacidade de representação simbólica às experiências e redundar em vulnerabilidade e sofrimento psicológico. Entre as consequências produzidas por um trauma, dentre outras, estão: alterações na estrutura cerebral, nas funções cognitivas e déficits no funcionamento psicológico em geral.

Na infância, com a personalidade ainda em formação, a criança constrói uma visão de mundo, das pessoas e de si mesmo, e o sentido dos relacionamentos em diferentes contextos sociais, familiar, de amigos, ambiente escolar, fundamentais para essa formação (NORONHA, 2020). Embora, ao longo da vida, se possa desenvolver um trauma psicológico em qualquer momento, é na infância que ele tem maior impacto e repercute mais agudamente em danos à saúde psíquica. O trauma psicológico ocorre como resultado de um evento angustiante experimentado pela pessoa.

Pires e Miyazaki (2005, p. 44) referem os maus-tratos na infância como principais fatores traumáticos: “negligência, física, educacional, emocional, abandono, sevícias ou abuso físico, abuso psicológico e abuso sexual”. Negligência e abandono (desamparo) envolvem: omissão de cuidados básicos e de proteção à criança frente a agravos evitáveis. O desamparo pode nunca ser completamente superado mesmo na vida adulta, pois é um estado inerente à condição humana: não está “restrito às condições de vida ou algo a ser superado na vida adulta, mas, antes, uma condição que acompanha de modo perene o acontecer psíquico” (ZAVARONI; VIANA, 2015, p. 333). Sevícias ou abuso físico envolvem o uso da força física, empregada de forma intencional, contra a criança ou o adolescente, por parte dos pais ou responsáveis; objetivam lesar, ferir ou destruir a vítima. O abuso sexual acomete jovens e mulheres, é repetitivo: ocorre quando a vítima, criança ou adolescente, tem condição inferior à do agressor; é realizado por violência física, ameaças e mentiras, e a vítima é forçada a práticas sexuais eróticas, com contato ou penetração (oral, vaginal, anal), sem ter capacidade emocional ou cognitiva para consentir ou avaliar o que está acontecendo. O abuso psicológico refere qualquer forma de rejeição, discriminação, depreciação ou desrespeito à criança ou adolescente; pode envolver punição, isolamento, humilhação ou agressões verbais e cobranças exageradas, baseadas em expectativas.

O trauma sempre ocupou um lugar de destaque na metapsicologia freudiana. A psicanálise considera o trauma de maneira ampla e complexa, entendido como algo que “impede o fluxo pulsional e que paralisa o acontecer psíquico em alguma de suas dimensões” (ZAVARONI; VIANA, 2015, p. 331). Em Freud (1996), o trauma relaciona-se a "traços de memória de traumas" ou a "lembranças do trauma" que se apresentam nos ataques histéricos. Os traumas da infância, no sentido do “acontecer psíquico”, têm ressonâncias psíquicas geradas pelo encontro da criança com situações potencialmente traumáticas, compostas de circunstâncias impactantes, geradoras de pesar e transtornos mentais, que demandam (re) arranjos vivenciais significativos.

Sugerem-se algumas condutas para se fazer frente ao trauma ou transtorno, inspiradas em Sartre: "O importante não é aquilo que fizeram conosco, mas o que podemos fazer com o que os outros fizeram de nós". Isto aponta que, em criança, embora não se tenha ciência do alcance das experiências vividas e dos danos traumáticos, na fase adulta, podem-se ressignificar tais experiências para superar ou, no mínimo, aprender a lidar melhor com essas memórias e suas consequências, pela prática do autoconhecimento (NORONHA, 2020).

São importantes atitudes como: reconstruir e fortalecer a autoestima, resultando em uma atitude positiva diante da vida; romper laços com familiares tóxicos e relações inapropriadas, convivendo com amigos e pessoas positivas para superar as sombras do passado; perdoar o ofensor, como forma de superar a imagem negativa sem deixá-la contaminar a si e às suas relações reconstruídas: aquele que perdoa livra-se do ressentimento, raiva ou qualquer outro sentimento que faça mal; não contaminar a vivência com os filhos, quebrando o ciclo nocivo e criando modelos saudáveis e afetuosos para a família; tirar proveito do trauma pela resiliência e enfrentamento da realidade; diante da possibilidade de não suportar, em que os recursos emocionais parecem fraquejar, buscar auxílio profissional de um psicoterapeuta (psiquiatra, psicanalista, psicólogo) para não tentar aguentar as consequências sozinho e fracassar.


Psicólogo André Marcelo Lima Pereira

Email: andremarcelopsicologo@hotmail.com

REFERÊNCIAS

FIGUEIREDO, Â. L.; DELL’AGLIO, J. C.; SILVA, T. L.; SOUZA, L. D. M.; ARGIMON, I. I. L. Trauma infantil e sua associação com transtornos dohumor na vida adulta: uma revisão sistemática. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 19, n. 3, p. 480-496, dez. 2013.

FREUD, S. Estudos sobre a histeria. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. II (1893-1895).

NORONHA, H. Sofrimento na infância pode impactar vida adulta; veja 7 dicas para superar... [Internet], 26 out. 2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/10/26/sofrimento-na-infancia-pode-impactar-vida-adulta-veja-7-dicas-para-superar.htm. Acesso em: 16 set. 2021.

PIRES, A. L.D.; MIYASAKI, M. C.O.S. Maus-tratos contra crianças eadolescentes: revisão da literatura para profissionais da saúde. ArqCiênc Saúde, v. 12, n. 1, p. 42-49, jan./mar. 2005.

WAIKAMP, V.; SERRALTA, F. B. Repercussões do trauma na infância na psicopatologia da vida adulta. Ciências Psicológicas, Facultad de Psicología - Universidad Católica delUruguay, v. 12, n. 1, p. 137-144, 2018.

ZAVARONI, D. M. L.; VIANA, T. C.Trauma e infância: considerações sobre a vivência de situações potencialmente traumáticas.Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, v. 31, n. 3, p. 331-338, Jjul./set. 2015.

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