ARTIGO

RELAÇÃO ABUSIVA: quando a passividade dói na alma

RELAÇÃO ABUSIVA: quando a passividade dói na alma

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Publicada há 2 anos

São atuais e emergentes os debates sobre relacionamentos abusivos e a violência em suas diversas tipificações e naturezas, que provocam impactos na saúde física e psicológica das vítimas que os vivenciam (BARRETO, 2018). Por mais que se reflita sobre os relacionamentos abusivos, entre 2003 e 2013, o número de vítimas do sexo feminino passou de 3.937 para 4.762, aumento de 21,0% na década (WAISELFISZ, 2015). Essas 4.762 mortes representam 13 homicídios femininos diários, causados “por algum homem próximo, como marido, namorado, pai, irmão” (ALBERTIM; MARTINS, 2018, p. 2). 

Apesar das diversas formas de auxílio às vítimas de violência, a permanência delas nas relações abusivas é alta: cerca de 34% das mulheres que buscaram unidades de saúde, de segurança pública e serviços especializados de atendimento à mulher em situação de violência, voltaram a conviver com o parceiro agressor. Diversos fatores contribuem para essa permanência em relacionamentos abusivos, tais como: dependência financeira, dependência psicológica, medo de morrer, esperança de mudança do companheiro, sentimentos de desvalorização, inferioridade e culpa, entre outros (GOMES; FERNANDES, 2018).

Na esfera familiar/doméstica, a violência conjugal surge como proeminente, seja entre um casal heteroafetivo ou homoafetivo (SOARES, 2005) e manifesta-se como “intimidações, humilhação, desqualificação, fazer a pessoa sentir-se mal consigo mesma, empurrar, esbofetear, estrangular, ameaçar usar armas brancas ou armas de fogo, forçar relações sexuais, assassinatos, dentre outras” (ALBERTIM; MARTINS, 2018, p. 3). 

Um dos pontos a se enfatizar é a dificuldade de os sujeitos perceberem o envolvimento em uma relação abusiva. Os homens, em uma sociedade machista, parecem estar, permanentemente, autorizados a afirmar seu poder da dominação-exploração das mulheres, mesmo que, para isto, precisem usar sua força física (BARRETO, 2018). No âmbito machista, os papéis e comportamentos dos homens são “considerados socialmente mais valiosos [...] o choro é desprezado, as respostas violentas são bem vistas, e o trabalho doméstico (apesar de ser imprescindível) passa quase inadvertido aos homens, mas se justifica que seja realizado pelas mulheres” (CASIQUE; FUREGATO, 2006, p. 2).

Tanto a violência física quanto a psicológica e a social impactam a saúde física e emocional da vítima. Algumas consequências sobre a saúde resultam da violência praticada por parceiros íntimos, entre outras (CASIQUE; FUREGATO, 2006; GOMES; FERNANDES, 2018): i) físicas: lesões, contusões ou fraturas, edemas e hematomas, invalidez; ii) sexuais e reprodutivas: distúrbios ginecológicos, sangramento genital, aborto espontâneo, gravidez indesejada, disfunção sexual, doenças sexualmente transmissíveis (HIV/AIDS), morte fetal e materna; iii) psicológicas e comportamentais: abuso de álcool, drogas e tabaco, depressão, ansiedade, sentimentos de vergonha e culpa, fobias, baixa autoestima, distúrbios de estresse pós-traumático, ideações suicidas e autoflagelo.

No relacionamento abusivo, existe um ciclo que comporta ações comuns entre os agressores, distribuídas em três fases: tensão no relacionamento por agressão verbal (gritos, xingamentos, ameaças); explosão da violência com espancamentos, murros, chutes, agressões com níveis elevados, mas de curta duração; arrependimento do agressor, quer redimir-se de todo praticado, sente remorso de perder a companheira, que acaba por perdoar (SOARES, 2005).

No relacionamento abusivo, muitas vezes naturalizado (BARRETO, 2018), estão presentes violência verbal, emocional, psicológica, física, sexual, financeira e tecnológica (controle velado das redes sociais da vítima). Em decorrência da privação liberdade, sofre-se, amplia-se a frequência dos abusos e a passividade (vítima não consegue reagir), ciclos de agressão e escalonamento da violência. Nesse tipo de relacionamento, a discrepância de poder e a posição de desigualdade geram sentimentos persistentes como dúvidas, confusão mental, ansiedade, insegurança, esperança de mudança do parceiro e cessação dos abusos, o que interfere na relação com família, amigos, trabalho, auto estima depreciada e auto percepção negativa.

Aos poucos, perde-se a identidade: a mulher cede, não se produz porque ele não quer, veste a roupa da escolha dele, não visita amigas (ele odeia) para não o constranger – ações sutis de domínio que se acumulam e avolumam. Em seguida, a mulher é xingada, sofre abusos. Inicia-se toda sorte de violência física e psicológica.

Violências, abusos, maus-tratos se revestem de uma carga ideológica e histórica específica (NJAINE, 2020). No relacionamento abusivo, as agressões mais comuns são o abuso físico, ligado à força bruta e produz lesões, traumas, feridas, dores e incapacidades em outrem (BRASIL, 2001). No ambiente familiar, a violência física produz forte impacto. As vítimas de espancamento e outras agressões físicas tendem a apresentar maior agressividade ou, inversamente, se mostram medrosas ou apáticas, passivas. Dói na alma ferida, e seu desenvolvimento é prejudicado: os comprometimentos se estendem por toda a vida adulta e reproduzem o comportamento agressivo com que foram abusadas.

Manifestações indiretas de violência, ou “atos destrutivos”, são formas de agressão psicológica usadas pelo homem em um relacionamento conflitante e abusivo. Na esfera psicológica, ataques verbais e gestuais, ameaças, chantagens emocionais visam aterrorizar, rejeitar, humilhar, restringir a liberdade ou promover o isolamento convívio social (CASIQUE; FUREGATO, 2006). Os abusos psicológicos vivenciados na conjugalidade engendram “afecções somáticas, manifestando um adoecimento mental e/ou físico que normalmente não são reconhecidos como efeitos da violência experenciada, já que esse tipo de violência não deixa marcas físicas” (RIBEIRO, 2020, p. 11). Nas inter-relações, registra-se a rejeição de pessoas. O abuso psicológico tem efeito devastador na autoestima, afetos e vínculos, compromete a formação da personalidade, torna-as vingativas, depressivas e encaminha tentativas ou execução de suicídios.

A saída de um relacionamento abusivo depende de muitas fontes de informação, de recursos disponíveis de encorajamento e confiança, fatores subjetivos e objetivos (GOMES; FERNANDES, 2018). As mulheres são socializadas para conviver com a impotência, a passividade, a dor, e “raramente uma mulher consegue desvincular-se de um homem violento sem auxílio externo. Até que isto ocorra, descreve uma trajetória oscilante, com movimentos de saída da relação e de retorno a ela” (SAFFIOTI, 1999, p. 85). Necessitam de apoio de parente, amiga da vítima, intervenção de vizinhos, leis, centro de apoio, delegacia específica; e da atuação social e políticas públicas que auxiliem no processo de ruptura da relação abusiva. Para Porto e Bucher-Maluschke (2014), o acolhimento e o aconselhamento são basilares para a recuperação das vítimas que conseguem livrar-se de um relacionamento abusivo.


Psicólogo André Marcelo Lima Pereira

Email: andremarcelopsicologo@hotmail.com

REFERÊNCIAS

ALBERTIM, R.; MARTINS, M. Ciclo do relacionamento abusivo: desmistificando relação tóxicas. In: 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação –de 2 a 8/09/2018. Anais... Joinville, SC, Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. 13 p.

BARRETO, R, S. Relacionamentos abusivos: uma discussão dos entraves ao ponto final. Gênero, Niterói, v. 18, n. 2, p. 142-154, 1. sem.2018.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 737, de 16 de maio de 2001. Aprova, na forma do Anexo desta Portaria, a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Diário Oficial da União: seção 1, p. 3, 18 maio 2001. Brasília, DF, Ministério da Saúde, 2001.

CASIQUE, L. C.; FUREGATO, A. R. F. Violência contra mulheres: reflexões teóricas. Rev Latino-am Enfermagem, v. 14, n. 6, nov./dez. 2006. 8 p.

GOMES, I. R. R.; FERNANDES, S.C. S. A permanência de mulheres em relacionamentos abusivos à luz da teoria da ação planejada. Boletim Academia Paulista de Psicologia, São Paulo, v. 38, n. 94, p. 54-66, jan./jun. 2018.

NJAINE, K.; ASSIS, S. G.; CONSTANTINO, P.; AVANCI, J. Q. (orgs.). Impactos da violência na saúde. 4th. ed. update. Rio de Janeiro: ENSP, Editora FIOCRUZ, 2020. 448 p.

PORTO, M.; BUCHER-MALUSCHKE, J. S. N. F. A permanência de mulheres em situações de violência: considerações de psicólogas. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, v. 30, n. 3, p. 125-276, jul./set. 2014.

RIBEIRO, M. B. T. Aspectos psicológicos e sociais do relacionamento abusivo: uma revisão integrativa de literatura. 2020. 32 f. Monografia (Bacharel em Psicologia) – Curso de Psicologia, Centro Universitário Fametro, Fortaleza, 2020.

SAFFIOTI, H. I. B. Já se mete a colher em briga de marido e mulher. São Paulo em Perspectiva, v. 13, n. 4, p. 82-91, 1999.

SOARES, B. M. Enfrentando a violência contra a mulher. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2005. 64 p.

WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil. 1. ed. Brasília, DF: Flacso, 2015. 83 p.

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