ARTIGO

MURRAY BOWEN: QUANDO A FAMÍLIA ADOECE

MURRAY BOWEN: QUANDO A FAMÍLIA ADOECE

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Publicada há 2 anos

Murray Bowen (1913-1990) foi um psiquiatra e psicanalista que desenvolveu a teoria dos sistemas familiares, conhecida como teoria de Bowen. Seus estudos, focados em famílias esquizofrênicas, lhe permitiram desenvolver sua teoria sobre famílias e o processo de diferenciação. 

Todas as famílias carregam consigo um “estilo de apego emocional”, isto é, o indivíduo depende da família de origem devido a esse apego emocional. Bowen concebe a família como uma unidade emocional, em que todos os seus componentes estão ligados entre si e influenciam-se mutuamente, como um sistema. Quando as ligações emocionais estão fusionadas, é possível a geração de sintomas, o que faz com que um ou mais membros do sistema familiar adoeçam, com reflexos e alteração do equilíbrio funcional da família como um todo (BATISTA; CARDOSO; GOMES, 2012). Na concepção de Bowen, o desenvolvimento humano inclui, além do contexto familiar multigeracional, social, cultural e histórico, a evolução da espécie humana, e grande parte do funcionamento humano é determinada “pelos mesmos princípios naturais que regem outras formas de vida, principalmente no que se refere aos processos emocionais” (OTTO; RIBEIRO, 2020, p. 80).

Cada indivíduo tem seu estilo de apego, indiferenciado ou diferenciado (MARTINS; RABINOVICH; SILVA, 2008). A diferenciação refere a capacidade pessoal de desligar-se do caos emocional da própria família, enquanto a indiferenciação tende a levar a pessoa a reagir aos demais. Na indiferenciação, percepções variadas ou comentários são considerados como ataques, e o comportamento se altera entre submissão e dominação. Enquanto as pessoas indiferenciadas são conduzidas a se tornarem escravas de suas emoções, com prejuízo de seu raciocínio, suas relações e sua autonomia, as pessoas diferenciadas são capazes de avaliar as situações de modo racional sem deixarem ser levadas pelo impulso emocional e de separar o que é seu do que é do outro, respeitando as diferenças interpessoais (FIORINI; MÜLLER; BOLZE, 2018).

Quando os casais não conseguem resolver seus conflitos conjugais, estando com baixo nível de diferenciação do self, habitualmente utilizam um terceiro elemento para escape da tensão (um filho, doença, trabalho, relações extraconjugais). Esse mecanismo é denominado de triangulação reativa: o relacionamento entre o self e os pais é descrito como um triângulo considerado o mais importante da vida. Um exemplo deste comportamento é quando um dos genitores está por demais ligado a um filho dependente, enquanto o outro genitor se afasta. Se este formato persistir e não se romper, o casal não resolve suas tensões, e este filho rebaixa ainda mais seu nível de diferenciação e dependência (NICHOLS; SCHWARTZ, 2007).

A teoria boweniana ressalta que, para se compreender a família, é mister desvelar o passado, as gerações precedentes, e ampliar o olhar para a família extensa: cada indivíduo é parte de uma rede de relações que envolvem as famílias de origem, cujas interações permitem à pessoa experimentar o que é e o que não é admissível na relação, criando a base de uma unidade sistêmica (OTTO; RIBEIRO, 2020).

Para LAWALL et al. (2012), o núcleo familiar é concebido como um espaço dinâmico em que crenças, hábitos e valores são compartilhados de forma verbal e não verbal, assimilados consciente ou inconscientemente pelos membros do grupo, que o tornam único. Este “ser família”, ao constituir um sistema familiar, passa de geração em geração, circula por meio de rituais, comportamentos, comunicações gestuais e nas circunstâncias mais corriqueiras (jeito de comer, de se vestir e se divertir), ou mais complexas (lidar com perdas, separações e humilhações). A história familiar transcende os laços sanguíneos e evidencia alianças subjetivas entre os indivíduos através das “identificações, dos mitos e legados que marcam a existência do indivíduo desde antes de seu nascimento”. Nessa acepção, “cada membro da família se apropria em parte daquilo que o outro carrega consigo, ou seja, daquilo que o outro é” (LAWALL et al., 2012, p. 462). Em qualquer família, coexistem tendências ou componentes do funcionamento familiar que contribuem para a manutenção da saúde emocional, bem como as tendências ou componentes que predispõem à enfermidade (BOTELHO, 2018).

Qualquer pessoa, porém, pode melhorar seu nível de diferenciação do self (autonomia em relação aos outros e separação do pensamento em relação ao sentimento) pelo aprimoramento da comunicação e reavaliação da história da sua família de origem: a independência emocional pode ser obtida quando se assume a responsabilidade pelos próprios problemas e se buscam soluções. Esse é o momento e o lugar de ação da psicoterapia como excelente aliada na busca do autoconhecimento e da regulação emocional (NICHOLS; SCHWARTZ, 2007).

A família de origem constitui-se ferramenta que auxilia a reduzir a tensão familiar, ou seja, o histórico geracional dessa família nuclear pode identificar a diferenciação do indivíduo em relação à família, capacidade que implica na saúde mental do indivíduo (MARTINS, 2018). Segundo Bowen, o melhor caminho para atingir a diferenciação do self é desenvolver uma comunicação efetiva e um bom relacionamento individual, pessoa a pessoa, com cada um dos pais e com os demais membros da família ampliada, mesmo que seja por meio de cartas e telefonemas, ou outros meios para restabelecer relacionamentos pessoais e íntimos. Quando tais relacionamentos forem mantidos e alcançarem o equilíbrio emocional sem se tornarem emocionalmente reativos ou sem triangulação, a diferenciação do self em relação à família se completa (NICHOLS; SCHWARTZ, 2007). 

Se o nível de indiferenciação da família de origem for elevado, a relação de casal pode desenhar-se por uma fusão emocional excessiva, que provoca conflito conjugal, perda da identidade individual e perturbação emocional. Padrões interacionais transmitidos ao longo das gerações podem gerar sofrimento e mesmo adoecimento: quanto maior a indiferenciação nas relações na família de origem, maior a chance de que essas interações se repitam em outras relações (BEIRAS, 2012).

O processo de transmissão geracional familiar pode implicar o surgimento de doenças, como depressão, estresse e outras, a se repetirem ao longo de gerações consecutivas. Para sua investigação, o profissional pode valer-se do genograma, que representa “o mapa da família. A partir da sua construção, a estrutura e a dinâmica familiar ficam evidentes de forma gráfica e, portanto, de fácil visualização” (BARRETO; CREPALDI, 2017, p. 74).

O genograma é recurso auxiliar na prática do psicólogo e pode embasar a terapia de família. Ao investigar o problema, projeta pelo menos três gerações (BARRETO; CREPALDI, 2017, BOTELHO, 2018), em que podem ser repetidos os padrões familiares, isto é, as gerações sucessivas tendem a repetir as mesmas questões emocionais não resolvidas (VASCONCELLOS, 2007). O processo de transmissão multigeracional assinala a herança familiar entre gerações, e o acúmulo dos percalços e problemas ao longo das gerações dificulta a diferenciação dos membros da geração atual (CERVENY, 2014).

A Terapia de Família pode ser um caminho propício para a busca da compreensão e tratamento dos dilemas humanos. Dela participam profissionais de diversas áreas, cuja escopo é explicar esses dilemas dentro do contexto interacional de relações familiares (VOGEL, 2011). No campo da psicologia, o desenvolvimento da terapia familiar sistêmica boweniana alavancou o emprego do genograma como instrumento clínico para descrever o conceito de transmissão transgeracional, as características emocionais de uma pessoa como decorrência do relacionamento dos pais e dos padrões geracionais precedentes (CARRASCO, 2014). Martins (2018) alega que os conceitos são úteis para a prática clínica em abordagem cognitivo-comportamental, dinâmica, ou familiar sistêmica. A prática clínica da teoria de sistemas registra famílias que experimentaram doenças cardiológicas, suicídio, espiritualidade, doenças crônicas, perda e luto nas diferentes fases do ciclo de vida familiar, pediatria e outros contextos (BOUSSO, 2008).

Enquanto o saber médico se ocupa com a pesquisa dos aspectos genéticos dos indivíduos, o conhecimento psicológico se ocupa com buscar o que existe de particular na história familiar do sujeito e no modo como ele participa das relações dessa história. Isso oportuniza ressignificar essa história e encontrar outra via que não a do adoecer (BOTELHO, 2018). As práticas multidisciplinares conferem um espaço para discutir a integralidade na prevenção e promoção da saúde (LAWALL et al., 2012). Nesse sentido, trabalhada de formas distintas por diferentes profissionais e por um sistema em particular decorrente do enfoque do que se estuda, a história familiar (revelada pelo genograma) desenha-se como fator de risco, e os profissionais das diversas áreas da saúde a consideram um elemento decisivo na determinação de aspectos relativos ao processo de sofrimento e adoecimento. 

Para Otto e Ribeiro (2020), é importante ressaltar que, segundo Bowen, as dinâmicas multigeracionais das famílias e do indivíduo devem ser consideradas, mesmo aquelas das quais o familiar nunca tenha participado. Ao terapeuta sugere-se que investigue até a quarta ou quinta gerações anteriores, caso necessite conhecer melhor a família e sua história (NICHOLS; SCHWARTZ, 2007).

Na teoria sistêmica, o ser “doente”, ou o indivíduo que apresenta problemas, representa circunstancialmente alguma disfunção no sistema familiar. Para Balieiro e Cerveny (2013, p. 155), o modelo tradicional de práticas psicoterapêuticas considera a manifestação do transtorno mental como “conflitos internos ou intrapsíquicos, cuja origem no próprio indivíduo, o modelo sistêmico daria ênfase a tal transtorno como expressão de padrões inadequados de interações familiares”.

Psicólogo André Marcelo Lima Pereira

Email: andremarcelopsicologo@hotmail.com

REFERÊNCIAS

BALIEIRO, C. R. B.; CERVENY, C. M. O. Família e doença. In: CERVENY, C. M. O. (org). Família e...: comunicação, divórcio, mudança, resiliência, deficiência, lei, bioética, doença, religião e drogadição. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2013, 209 p. p. 147-161. 

BAPTISTA, M. N.; CARDOSO, H. F.; GOMES, J. O. Intergeracionalidade familiar. In: BAPTISTA, M. N.; TEODORO, M. L. M. Psicologia de família: teoria, avaliação e intervenção. Porto Alegre: Editora Artmed, 2012. Cap. 1, p. 16-26.

BARRETO, M.; CREPALDI, M. A. Genograma no contexto do SUS e SUAS a partir de um estudo de caso. Nova Perspectiva Sistêmica, São Paulo, v. 26, n. 58, p. 74-85, ago. 2017.

BEIRAS, A. (coord.). Nova perspetiva sistêmica, ano XXI, N. 44, dez. 2012. 111 p. 

BOTELHO, M. R. O processo de transmissão multigeracional familiar da depressão: a busca do padrão familiar com o uso do genograma. 2018. 103 f. Dissertação em Psicologia) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.

BOUSSO, R. S. A Teoria dos Sistemas Familiares como referencial para pesquisas com famílias que experienciam a doença e a morte. REME – Rev. Min. Enferm., v. 12, n. 2, p. 257-261, abr./jun. 2008.

CARRASCO, L. A utilização do genograma em estudos de família. In: WAGNER, A. (org). Como se perpetua a família? A transmissão dos modelos familiares. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014. p. 151-163.

CERVENY, C. M. O. O livro do genograma. 1. ed. São Paulo: Editora Roca, 2014. 248 p.

FIORINI, M. C.; MÜLLER, F. G.; BOLZE, S. D. A. Diferenciação do self: revisão Integrativa de artigos empíricos internacionais. Pensando fam., Porto Alegre, RS, v. 22, n. 1, p. 146-162, jan./jun. 2018.

LAWALL, F. A. A.; TRIVELLATO, I. O.; SHIKASHO, L.; FILGUEIRAS, M. S. T.; SILVA, N. C.; ALMEIDA, T. R. Heranças familiares: entre os genes e os afetos. Saúde & Sociedade, São Paulo, v. 21, n. 2, p. 458-464, 2012.

MARTINS, A. R. R. Revisão sistemática do ciclo vital da família. 2018. 87 F. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) – Instituto Superior Miguel Torga, Coimbra, Portugal, 2018.

MARTINS, E. M. A.; RABINOVICH, E. P.; SILVA, C. N. Família e o processo de diferenciação na perspectiva de Murray Bowen: um estudo de caso. Psicol. USP, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 181-197, jun. 2008.

NICHOLS, M. P.; SCHWARTZ, R. C. Terapia familiar: conceitos e métodos. Tradução Maria Adriana Veríssimo Veronese. 7. ed. Porto Alegre: Editora Artmed, 2007. 

OTTO, A. F. N.; RIBEIRO, M. A. R. Contribuições de Murray Bowen à Terapia Familiar Sistêmica. Pensando fam., Porto Alegre, v. 24, n. 1, p. 79-95, jul. 2020.

VASCONCELLOS, M. J. E. Panorama das abordagens transgeracionais em terapia familiar. In: AUN, J. G.; VASCONCELLOS, M. J. E.; COELHO, S. V. Atendimento sistêmico de famílias e redes sociais: o processo de atendimento sistêmico. Belo Horizonte: Ophicina de Arte e Prosa, 2007. v. 2, t. 2, p.230-258.

VOGEL, A. Um breve histórico da Terapia Familiar Sistêmica. Revista IGT na Rede, v. 8, n. 14, p. 116-129, 2011.

últimas