ARTIGO

COGNIÇÃO SOCIAL A SERVIÇO DA SAÚDE MENTAL DO COLETIVO

COGNIÇÃO SOCIAL A SERVIÇO DA SAÚDE MENTAL DO COLETIVO

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Publicada há 2 anos

A cognição (ou neurocognição) é o processo que permite a um indivíduo tomar ciência de si, do que o rodeia e da compreensão de conceitos que envolvem percepção, pensamento e memória, vale dizer, a vida mental do indivíduo (VAZ-SERRA et al., 2010). As funções cognitivas englobam os domínios da atenção, da percepção, da linguagem e da compreensão e fluência verbal, vários tipos de aprendizagem e de memória, do processamento da informação, da organização perceptiva e do funcionamento executivo. Por seu turno, a cognição social se localiza na intersecção de várias dimensões – perceptiva, cognitiva, social, emocional, e desenvolvimento da personalidade, integrando, pois, diversas áreas da psicologia do desenvolvimento (RAMIRES, 2010). Segundo Tonelli (2015, p. 20), “cognição social é a atividade cerebral relacionada à produção de representações mentais da vida em sociedade, ou representações mentais sociais, elaboradas a partir da detecção de padrões identificados na convivência com outros seres humanos”. É sua função detectar padrões, organizar e ordenar a formação de representações mentais sobre o mundo.

Dessa forma, a cognição social pode ser entendida a partir de um conjunto de processos sociais que garantem a construção de inferências sobre crenças, intenções e interações com os outros, bem como o equilíbrio dos fatores situacionais sociais diante dessas inferências. A cognição social reflete como os indivíduos se comportam diante dos outros membros da sociedade e como reportam a tendência de transgredir o contrato social, a normatividade e a consolidação da civilização (SOARES, 2014). Existe, assim, um processo psiconeurobiológico que determina os comportamentos: a cognição social desempenha o papel de interpretar os signos sociais e suas condutas, ou seja, como o indivíduo percebe e compreende as pessoas à sua volta.

Para Ramires (2003, p. 404), a cognição social vai além da percepção e inferências sobre outras pessoas e envolve a “compreensão das relações entre os próprios sentimentos, pensamentos e ações, tanto quanto as relações entre esses fatores pessoais e os fatores correspondentes nas outras pessoas”. Assim, na perspectiva da cognição social, a compreensão da interação social está relacionada à “organização dos conceitos sociais e da habilidade de integrar e coordenar perspectivas”. Consiste, pois, em uma operação mental que está na base do funcionamento social, da capacidade humana de perceber as intencionalidades e a disposição do outro em um contexto – o que inclui habilidades da percepção social, atribuição, empatia e reflexo das interferências do contexto social. Em decorrência, suas inferências têm interferência direta no comportamento e saúde mental coletiva. Essas habilidades são influenciadas por fatores como a motivação do indivíduo e por fatores sobre os quais o indivíduo não tem controle, como nível de apoio social, meios financeiros, recursos pessoais etc. Essas habilidades, porém, fornecem uma aproximação maior da competência de um indivíduo para a compreensão do outro (COUTURE; PENN; ROBERTS, 2006).

Com base na psicologia cognitiva, os psicólogos sociais passaram a empregar modelos cognitivos na tentativa de entender os processos básicos subjacentes às interações sociais. Trata-se da caracterização dos sinais e sintomas clínicos representados por distúrbios agudos da consciência e da cognição. Os critérios adotados para essa caracterização incluem investigação sobre: perturbação da atenção e da consciência; mudança da atenção e da consciência basais com tendência a oscilações diárias; perturbação adicional na cognição como déficit de memória (ou déficit cognitivo), desorientação, linguagem, capacidade viso-espacial ou percepção; perturbações por outro transtorno neurocognitivo preexistente; evidências de perturbações mentais a partir da história, do exame físico ou de achados laboratoriais de que a alteração é consequência fisiológica direta de alguma condição médica, intoxicação ou abstinência de droga ou medicamento (SESA, 2018).

 Déficits cognitivos podem ser entendidos como “deterioração de capacidades cognitivas como memória, atenção e/ou funções executivas, entre outras, levando a uma diminuição da capacidade da pessoa se manter autônoma no seu cotidiano” e em seu relacionamento social (SILVA; SEABRA, 2020, p. 2). Tonelli (2015, p. 22) considera que prejuízos em diferentes domínios cognitivos sociais representam manifestações psicopatológicas, como os sintomas da esquizofrenia oriunda de problemas na capacidade de inferir estados mentais (desejos, intenções e crenças em outras pessoas). Pacientes paranoides manifestariam “déficits na construção de representações mentais de estados mentais de terceiros, prejudicando a sua capacidade de prever o comportamento de outros indivíduos”.

Dessa forma, um acurado exame do estado mental pode incluir análises que investiguem: identificação de emoções e inferência de estados mentais de outras pessoas (TONELLI, 2015); comportamento e aparência (sinais, sintomas e atitudes) e comportamento social; humor e afeto relacionados ao controle e à expressão das emoções ou sentimentos; conteúdos do pensamento, incluindo delírios, paranoia, suspeita e ideação suicida; percepção sensitiva perturbada (como alucinações auditivas ou visuais) pela falta de estímulo apropriado; comprometimento no funcionamento interpessoal, cognição, afetividade e controle de impulsos. Pode ocorrer que a pessoa não conheça a natureza irreal da percepção, da cognição, nem dos achados clínicos que indicam o transtorno nas capacidades mentais e processos relacionados com a atenção, a memória, o juízo, o raciocínio, a solução de problemas, o processo decisório, a compreensão e a integração dessas funções (SESA, 2018).

Rigoni et al. (2014) e Carvalho, Oliveira e Pinto (2021) consideram, todavia, que a principal área de cognição a necessitar de uma avaliação abrangente é a memória, principalmente entre os etilistas de longa data e consumidores de substâncias psicoativas, consistindo na resposta que cada organismo registra diante dos efeitos cognitivos e emocionais dessas substâncias. Comprometimentos da memória sinalizam erros que, segundo Ferreira, Oliveira e Paula (2018, p. 75), são comumente reconhecidos como falhas cognitivas, isto é, pequenos desvios de “memória, percepção, planejamento e execução de determinada tarefa ou atividade, sendo frequentes no cotidiano da maioria das pessoas”. Essas lacunas na memória podem refletir traços do funcionamento cognitivo, embora, em geral, representem problemas na aplicação dessas funções em situações cotidianas pouco estruturadas, podendo ser consideradas comuns entre adultos hígidos, associadas a fatores como exposição ao estresse, fatores de personalidade, sono ou mesmo com a cognição. As falhas cognitivas podem indicar transtornos mentais, cujas consequências negativas não se limitam à frustração ou ao sofrimento psicológico, mas comprometem o funcionamento social do indivíduo, podendo interferir no comportamento e na saúde mental do coletivo.

Portanto, cuidar da cognição social é cuidar da saúde mental individual e coletiva, uma vez que envolve a pessoa e o outro. Pereira e Penido (2010, p. 194) sugerem o modelo biopsicossocial e consideram a “influência de fatores psicológicos, ambientais, biológicos e sociais como fundamentais para o entendimento do comportamento humano”. Essa abordagem refere a Terapia Comportamental Cognitiva (TCC) como importante método para corrigir os transtornos psicológicos disfuncionais ou distorcidos na forma de “perceber os acontecimentos, influenciando o afeto e o comportamento”, uma vez que o modo como um indivíduo interpreta situações específicas interfere diretamente em seus sentimentos, motivações e ações.

O modelo cognitivo propõe interação entre pensamentos, sentimentos e comportamentos, cujo objetivo fundamental é a mudança do comportamento individual, por meio da modificação de seus pensamentos, em benefício do comportamento social. A Terapia Comportamental Cognitiva atua, portanto, no sentido de promover a modificação de comportamentos e estimula a adoção de padrões de enfrentamento adaptativos, pelos quais o indivíduo passa a interpretar sua doença, sintomas, tratamento e prognóstico de forma diferente, o que influencia seus sentimentos e sua reação comportamental. A TCC também possibilita “identificar e modificar distorções do pensamento que possam estar trazendo sofrimento ao indivíduo. As distorções cognitivas [...] representam formas de interpretação que, em geral, privilegiam somente parte das informações disponíveis” no ambiente de inserção social da pessoa (PEREIRA; PENIDO, 2010, p. 205), podem levar o indivíduo a conclusões erráticas e limitar a percepção da situação, disparando sentimentos, reações físicas e comportamentos disfuncionais.

Falhas na cognição social refletem diretamente na saúde mental, individual e coletiva, já que o indivíduo não vive só, mas interage com outros indivíduos na coletividade nas mais diversas áreas e situações. Tais falhas geram disfunções no processo saúde-doença e trabalho (cognição social), saúde mental e trabalho, neuropsicologia, toxicologia comportamental, causalidade de acidentes de trabalho, modelos de gestão e de organização do processo de trabalho, subjetividade e saúde mental individual que se extrapola para a saúde do coletivo (CFP, 2019).

Por isso, um dos objetivos da Psicologia da Saúde é “conhecer e compreender os fatores que influenciam os comportamentos das pessoas em relação à saúde e a enfermidade para, a partir daí, desenvolver estratégias adequadas de intervenção. Com tal propósito, a terapia cognitivo-comportamental utiliza uma variedade de estratégias” (PEREIRA; PENIDO, 2010, p. 190), aplicadas a problemas relacionados à saúde dos indivíduos com reflexos no coletivo. Os processos cognitivos influenciam nos comportamentos de saúde e doença do sujeito, e algumas técnicas cognitivo-comportamentais podem ser aplicadas em busca da compreensão e manejo de problemas de saúde ou do processo saúde-doença em contexto hospitalar, como dessensibilização sistemática, relaxamento muscular, respiração diafragmática, distração cognitiva e treinamento em habilidades sociais para não comprometer o coletivo. Em terapia, os sujeitos se permitem aprender a transformar a comunicação de forma mais positiva e compreender a si mesmo e aos outros, identificando pensamentos, sentimentos e objetivos.

É importante que o profissional psicólogo domine amplamente os aspectos teóricos da terapia cognitivo-comportamental, com o entendimento de quando e como aplicar as técnicas, tornando essa área relevante para a prática dos psicólogos. (PEREIRA; PENIDO, 2010). Cabe sugerir a inserção sistemática de atividades que objetivem minimizar os danos causados pelo processo de saúde-doença mental na cognição social a serviço da saúde mental individual e coletiva, a fim de restabelecer funcionalidades cognitivas nos serviços de saúde mental.


Psicólogo André Marcelo Lima Pereira

Email: andremarcelopsicologo@hotmail.com

REFERÊNCIAS

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CFP – Conselho Federal de Psicologia (Brasil). Saúde do trabalhador no âmbito da saúde pública: referências para atuação da(o) psicóloga(o). 2. ed. Brasília: CFP, 2019. 86 p.


COUTURE, S. M.; PENN, D. L.; ROBERTS, D. L. The functional significance of social cognition in schizophrenia: a review. Schizophrenia Bulletin, vl. 32, n. S1, p. S44–S63, August 17, 2006.


FERREIRA, A. A.; OLIVEIRA, W. G. A.; PAULA, J. J. Relações entre saúde mental e falhas cognitivas no dia a dia: papel dos sintomas internalizantes e externalizantes. J Bras Psiquiatr., v. 67, n. 2, p. 74-79, 2018.


PEREIRA, F. M.; PENIDO, M. A. Aplicabilidade teórico-prática da terapia cognitivo comportamental na psicologia hospitalar. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, v. 6, n. 2, p. 189-220, dez. 2010.


RAMIRES, V. R. R. Cognição social e teoria do apego: possíveis articulações. Psicologia: Reflexão e Crítica, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), v. 16, n. 2, p. 403-410, 2033.


RIGONI, M. S; IRIGARAY, T. Q.; MORAES, J. F. D.; FERRÃO, Y.; OLIVEIRA, M. S. Desempeño neuropsicológico y características sociodemográficas en pacientes alcohólicos en tratamento [Neuropsychological performance and demographic characteristics in alcoholic patients in treatment]. Adicciones, v. 26, n. 3, p. 221-229, 2014.


SESA – Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo. Diretrizes clínicas em saúde mental. 1. ed. Vitória, ES: SESA, 2018. 269 p.


SILVA, V. A. H.; SEABRA, P. R. C. Estimulação cognitiva em pessoas com doença mental na comunidade: revisão integrativa. Rev Bras Enferm., v. 73, n. 1, p. e20180192, 2020. 9 p.


SOARES, M. S. A cognição social e suas funcionalidades neurológicas nas condutas antissociais. 2014. 35 f. Monografia (Graduação em Psicologia) – Departamento Humanidades e Educação (DHE), Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUI), Ijuí, RS, 2014.


TONELLI, H. A. Cognição social, modo default e psicopatologia. PsicoFAE, Curitiba, v. 4, n. 1, p. 19-32, 2015.


VAZ-SERRA, A.; PALHA, A.; FIGUEIRA, M. L.; BESSA-PEIXOTO, A.; BRISSOS, S.; CASQUINHA, P.; DAMAS-REIS, F.; FERREIRA, L.; GAGO, J.; JARA, J.; RELVAS, J.; MARQUES-TEIXEIRA, J. Cognição, cognição social e funcionalidade na esquizofrenia. Acta Med Port., Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, v. 23, n. 6, p. 1043-1058, 2010.

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