ARTIGO

PATOGÊNESE X SALUTOGÊNESE: reflexão sobre as duas linhas tradicionais de análise dos fatores biopsicossociais

PATOGÊNESE X SALUTOGÊNESE: reflexão sobre as duas linhas tradicionais de análise dos fatores biopsicossociais

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Publicada há 1 ano

Os indivíduos estão imersos em uma sociedade com princípios nem sempre pacíficos, mas conturbados, pelos quais se sentem apreensivos e expressam inúmeros sentimentos ou emoções dominantes como angústia, ansiedade, medo, aflições, incômodos e não aceitação das condições adversas da rotina diária, que agridem a saúde em suas diversas dimensões e o predispõem ao adoecimento.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu saúde como um “estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade” (WHO, 2020, p. 1). Também assenta que o “gozo do mais alto padrão possível de saúde é um dos direitos fundamentais de todo ser humano, sem distinção de raça, religião, crença política, condição econômica ou social. A saúde de todos os povos é fundamental para a obtenção da paz e da segurança e depende da mais plena cooperação dos indivíduos e dos Estados” (WHO, 2020, p. 1).

Svalastog et al. (2017) entendem saúde como um estado relativo em que a pessoa se expressa bem física, mental, social e espiritualmente suas potencialidades peculiares e únicas. Saúde e doença são processos dinâmicos e cada sujeito se situa em um espectro contínuo (continuum) que vai do bem-estar e o funcionamento ideal em todos os aspectos da vida até a doença culminando com a morte. Nessa visão, a doença pode ser caracterizada como um conjunto de sinais e sintomas que afetam o ser vivo e altera seu estado normal de saúde, envolvendo dois conceitos primários: a patogênese e a salutogênese.

Patogênese origina-se do grego pathós= sentimento, sofrimento, doença, e genos = que dá origem, semente (DICIONÁRIO..., 2012, p. 680). A patogênese está voltada para a doença e centrada em seus agentes causais, no modus como atuam no organismo humano e produzem doença que se relaciona a um conjunto de sinais visíveis, perceptíveis e sintomas sentidos, mas não visíveis; está associada ao estudo do adoecimento humano e à evitação das enfermidades (SVALASTOG et al., 2017). A patogenia refere-se, pois ao “estudo das causas e do desenvolvimento das lesões e dos estados patológicos” (CAMARGO; OLIVEIRA, 2007, p.108), portanto, estuda os mecanismos que favorecem o desenvolvimento de determinada doença ou estado doentio, ou seja, que produzem doença, sofrimento, dano, morte.

É comum às ciências da saúde o estudo não da saúde (salus, em latim), mas do adoecimento humano e os meios de evitá-lo (patogênese). A patogênese é um termo cunhado por Aaron Antonovsky (sociólogo e médico) que, após estudar o drama de seres humanos submetidos a situações extremas (sobreviventes de campo de concentração nazista), identificou, nas pessoas com suporte espiritual, maior capacidade de autocontrole, de serenidade e mesmo de equilíbrio imunológico diante de situações estressantes. Este enfoque na saúde – o equilíbrio como condição existencial possível – é o que se chama de salutogênese, dimensão oposta à patogênese.

Em sentido contrário, a salutogênese indaga por que um sujeito adoece e como deve proceder para se manter saudável, equilibrado e em harmonia consciente, em que pesem os embates da existência e os desafios da vida. Busca compreender, pois, o que gera a saúde das pessoas, tendo em vista que há sujeito que permanecem bem e conseguem administrar sua vida mesmo diante de condições adversas (ERIKSSON; LINDSTRÖM, 2007; MARÇAL et al., 2018). A salutogênese não questiona por que se adoece nem como se trata a doença, como a patogênese, mas o que deve ser feito para que os sujeitos se mantenham sadios e em equilíbrio mesmo diante dos embates da existência, sem fugir dos desafios e agravos. Não se “trata de uma procura pela felicidade inconsciente, mas por uma harmonia consciente diante dos desafios da vida” (MORAES, 2014, p. 159).

Costa (2017), reiterando Antonovsky (1979), salienta que, ao longo de toda a vida, em aprendizado permanente, o sujeito adquire condições físicas e anímicas que o habilitam a “lidar”, de maneira adequada, com situações críticas, sugerindo um olhar não apenas em direção à doença (patogênese, origem da doença), mas um investimento sobre geração e manutenção da saúde (salutogênese, origem da saúde). Tem-se, pois, que a salutogênese objetiva criar saúde e está centrada nos fatores que sustentam a saúde e o bem-estar humanos, em oposição à abordagem patogênica que estuda os fatores que causam a doença. 

Para Antonovsky (1979), Moraes (2014) e Vieira (2018), o paradigma central da salutogênese é o senso de coerência que caracteriza a forma como um indivíduo resolve, de modo satisfatório e saudável, seus desafios existenciais sem sucumbir a eles: é atributo individual que protege o indivíduo contra as consequências prejudiciais de doenças, incluindo o estresse. Trata-se de uma abordagem crítico-reflexiva sobre a patogenia curativa centrada na doença contraposta à perspectiva salutogênica preventiva voltada para a saúde. O princípio salutogênico, portanto, refere-se a um conceito de saúde e enfrentamento em que as experiências de vida contribuem para moldar o senso de coerência de um indivíduo (ITIYAMA; MACUCH; MILANI, 2021, p. 1), o qual concebe a vida como mais ou menos compreensível, significativa e administrável, estruturada em função do contexto histórico-cultural individual (ERIKSSON; LINDSTRÖM, 2007; MITTELMARK et al., 2016).

A salutogênese aborda as condições desenvolvidas pelo ser humano ao longo da vida, por meio de um aprendizado constante desde a mais tenra idade, o que o capacita a lidar adequadamente com situações críticas e manter a saúde. Supõe experiências, utilizadas de maneira coerente, para proteção integral do ser humano, sendo “responsáveis pelo grau de resiliência frente a adversidades de qualquer espécie” (MARASCA, 2020, p. 26). É um aprendizado cognitivo, emocional e volitivo de toda a vida: sua percepção implica o desenvolvimento pessoal e social para fortalecer a saúde das pessoas em diferentes cenários e está relacionada a dois aspectos principais: o senso de coerência e os recursos gerais de resistência.

O senso de coerência se desenvolve ao longo de todo o ciclo vital de um indivíduo, ou seja, aumenta com a idade e consiste em desenvolver uma orientação global no sentido de ver a vida de forma estruturada, manejável e com sentido emocional. Considerado o ponto nevrálgico para manter a saúde, é formado por três variáveis que atuam em conjunto e permitem que o indivíduo seja capaz de enfrentar os estressores na vida cotidiana: compreensibilidade (capacidade de compreender um evento), maneabilidade (percepção do potencial de manipulá-lo ou resolvê-lo) e significância (significado que se dá a esse evento) (BONANATO et al., 2009; GIRONDOLI, 2021). Quanto maior o senso de coerência, mais os indivíduos se encontram capacitados a enfrentar as dificuldades da vida e manter a própria saúde. Quando se vê o mundo como compreensível, manipulável e significativo, isso facilita a escolha de recursos e comportamentos eficazes e culturalmente apropriados para enfrentar situações adversas e explica como as pessoas conseguem administrar suas vidas e promovem a saúde (ERIKSSON; LINDSTRÖM, 2007).

Moraes (2014, p. 160) corrobora que pessoas com forte senso de coerência lidam bem com as situações da vida, enquanto pessoas com fraco senso de coerência frequentemente sucumbem aos embates da vida, tornam-se deprimidas, “deixam-se morrer, ou se desesperam, agem sem pensar, cometem crimes, suicidam-se, alcoolizam-se etc.”. Para o autor, entre os fatores que favorecem um maior senso de coerência estão uma educação eficaz (formação da pessoa humana), boa sociabilidade, genética favorável, recursos cognitivos disponíveis (informação e esclarecimento), equilíbrio emocional, capacidade de avaliação inteligente das situações, um sistema de crenças favorável e um amparo afetivo em comunidade, família ou agremiação de pessoas afins.

Para os recursos gerais de resistência concorrem variáveis relacionadas ao indivíduo, ao grupo social e ao meio ambiente no sentido de facilitar ou não o manejo efetivo das tensões: relacionam-se ao “bem-estar” ou ao “não estar bem” (MORAES, 2014). Entre eles se encontram os recursos: ambientais e materiais (contexto em que o indivíduo nasce e se desenvolve, por meio da educação, saúde, ocupação, ambiente físico propício etc.); físicos e bioquímicos (fatores genéticos individuais, capacidade de adaptação a mudanças e imunidade contra doenças); emocionais (identidade do eu, identificação do papel, personalidade estável, estratégias de enfrentamento); interpessoais ou relacionais (rede de suporte social, como o apoio do cônjuge, de familiares, de amigos); socioculturais (formas de adaptação ao ambiente social).

Entre os recursos considerados positivos para a saúde se encontram alimentação saudável, prática regular de atividade física e lazer, sono adequado, equilíbrio emocional, bom convívio social e práticas integrativas (como terapias para tratamento do corpo e do espírito, meditação, yoga etc.), empoderamento psicológico estimulado pelo apoio social e autoestima para adoção de comportamentos favoráveis à saúde, fomento às potencialidades individuais e escolhas pessoais julgadas importantes para a vida (GIRONDOLI, 2021). Moraes (2014) salienta que um dos fatores salutogênicos para que uma pessoa se mantenha sadia e ‘forte’ (resiliente) é justamente a espiritualidade. A salutogênese, em contraste com a patogênese, revela os recursos positivos da saúde e as estratégias que as pessoas adotam para mantê-la, contribuindo para o bem-estar e a qualidade de vida, essenciais para a promoção da saúde. Portanto, o método salutogênico permite às pessoas que levem uma vida produtiva e controlem as adversidades pessoais e seu ambiente.

Nessa ótica, salutogênese é processo que fomenta o potencial de o ser humano viver de modo mais satisfatório possível, capacitar-se a superar adversidades, estabelecer a promoção da saúde positiva como foco primordial, incentivar a autonomia e a habilidade de administrar sua vida, fazer escolhas conscientes e mantê-las saudáveis. A salutogênese incorpora a saúde como um recurso para a vida e não um objetivo do viver. Isso, todavia, lembra Lama (2011), segundo o auqlo mais surpreendente é que os homens “perdem sua saúde para ganhar dinheiro e então gastam o dinheiro para recuperar a saúde. Que por pensarem ansiosamente sobre o futuro, eles esquecem o presente, de modo que não vivem nem o presente nem o futuro. Que vivem como se nunca fossem morrer e morrem como se não tivessem vivido”.

A Psicologia se insere como ciência na busca da compreensão da saúde. Não constitui, porém, uma oposição ao ideário curativista ou à noção de unicausalidade, que sustentam a ideia de que saúde é ausência de doença, ou seja, as “práticas em saúde têm como função principal a cura das doenças físicas, desconsiderando que os indivíduos podem ser responsáveis pelo seu estado de saúde devido a suas crenças e a seus comportamentos de risco [...] e pela sua não adesão às recomendações médicas” (ALMONDES, 2013, p. 648). 

A Psicologia respeita o conceito de saúde enunciado pela OMS (WHO, 2020) como sendo o bem-estar físico, psíquico e social do indivíduo, e não apenas ausência de uma doença ou de uma enfermidade, relevando a dimensão psíquica do sujeito. Portanto, quando se fala em intervenção psicológica, não se dirige o foco para o binômio saúde-doença: a Psicologia da Saúde investiga para responder a uma demanda sociossanitária, isto é, vai além da intervenção curativa conforme o modelo biopsicossocial e ambiental: ela ocorre em perspectiva interdisciplinar, com participação efetiva de outras áreas do saber no exercício de atenção à saúde, integra as várias visões sobre saúde e resgata seu papel primordial de intervir em saúde nas dimensões emocional e psíquica. Para Moraes (2014), a Psicologia aproxima-se do processo de maturação espiritual, quando correlaciona questões relativas à sanidade anímica e espiritual e a resiliência do indivíduo diante dos desafios da vida.

Psicólogo André Marcelo Lima Pereira

Email: andremarcelopsicologo@hotmail.com



REFERÊNCIAS

ALMONDES, K. M. Psicologia da saúde e cronobiologia: diálogo possível? Psicologia Ciência e Profissão, v. 33, n. 3, p. 646-655, 2013.


ANTONOVSKY, A. Health, stress andcoping. San Francisco, USA: Jossey-Bass, 1979. p. 15-36.


BONANATO, K.; BRANCO, D. B. T.; MOTA, J. P. T.; RAMOS-JORGE, M. L.; PAIVA, S. M.; PORDEUS, I. A.; KAEPPLER, K. C. Trans-culturaladaptationandpsychometricpropertiesofthe 'SenseofCoherenceScale' in mothersofpreschoolchildren. Interam. j. psychol., Porto Alegre, RS, v. 43, n. 1, p. 144-153, abr. 2009.


CAMARGO, J. L. V.; OLIVEIRA, D. E. Patologia geral: abordagem multidisciplinar. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2007. 204 p. 


COSTA, E. M. G. Pedagogia Waldorf e salutogênese: o ensino como fonte de saúde. Utopía y PraxisLatinoamericana, UniversidaddelZulia, Venezuela, v. 22, n. 79, p. 96-109, 2017. 


DICIONÁRIO MÉDICO CLIMEPSI. Lisboa: Climepsi Editores, 2012. p. 680.


ERIKSSON, M.; LINDSTRÖM, B.Antonovsky'ssenseofcoherencescaleand its relationwithqualityoflife: a systematicreview. J EpidemiolCommunity Health., v. 61, n. 11, p. 938-944, 2007 Nov.


GIRONDOLI, Y. M. Salutogênese: você sabe o que é? [Internet], Instituto Federal do Espírito Santo, 2021. 6 p. Disponível em : https://prodi.ifes.edu.br/images/stories/SALUTOG%C3%8ANESE.pdf. Acesso em: 26 abr. 2022.


ITIYAMA, A. F. A.; MACUCH, R. S.; MILANI, R. G. Teoria salutogênica de Aaron Antonovsky: aplicações no contexto da promoção da saúde. In: XII EPCC UNICESUMAR - Universidade Cesumar, de 19 a 21 de outubro de 2021. Anais Eletrônicos, Universidade Cesumar, 2021. 4 p.


LAMA, D. A arte da felicidade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. 474 p. 


MARASCA, E. A perspectiva salutogênica e a pedagogia Waldorf. In: RITO, M.; BASEIO, M. A. F.; ABI-SÂMARA, M. C. L.; GUERRA, M. G. M. (eds.). Revista Jataí 2. São Paulo: Faculdade Rudolf Steiner, 2020. p. 11-42.


MARÇAL, C. C. B.; HEIDEMANN, I. T. S. B.; FERNANDES, G. C. M.; RUMOR, P. C. F.; OLIVEIRA, L. S. A salutogênese na pesquisa em saúde: uma revisão integrativa. Revenferm UERJ, Rio de Janeiro, v. 26, p. e37954, p. 1-6, 2018. 


MENDES, R. Patogênese das novas morfologias do trabalho no capitalismo contemporâneo: conhecer para mudar. Estudos Avançados, v. 34, n. 98, p. 93-109, 2020.


MITTELMARK, M. B.; ERIKSSON, S. S. M.; BAUER, G. F.; PELIKANM, J. M.; LINDSTRÖM, B.; ESPNES, G. A. (eds.). The handbookofsalutogenesis. Springer, 2016. 467 p.


MORAES, W. A. Salutogênese e caminhos iniciáticos – a espiritualidade como item de saúde. Arte MédAmpl, v. 34, n. 4, p.156-163, 2014.


SVALASTOG, A. L.; DONEV, D.; JAHREN KRISTOFFERSEN, N.; GAJOVIĆ, S. Conceptsanddefinitionsofhealthandhealth-relatedvalues in theknowledgelandscapesofthe digital society. CroatMed J., v. 58, n. 6, p. 431-435, 2017 Dec 31.


WHO – World Health Organization.Basic documents: forty-ninthedition (includingamendmentsadoptedupto 31 May 2019). 29th ed. Geneva: World Health Organization, 2020. 244 p.


últimas